REFÚGIO ETERNO
Pois que a vida é um sonho à-toa
Pelo deserto do mundo,
Árido, triste, infecundo,
Onde a alma cansada voa;
Pois que da alegria imensa
– Herança do nosso berço –
Fica o amargor da descrença,
Sombra do nosso Universo;
Pois que o lábio que Deus fez
Para a alvorada do beijo
Tisna a mentira, e a tez
Exibe o impudor e o pejo;
Pois se a mão que nos afaga
Hoje, amanhã nos açouta,
E a idéia é como uma vaga,
E o crânio uma vela rota;
Pois se a noite da traição
De trevas horrendas, mudas,
Ri-se de Cristo e Catão
E elege um tirano: Judas;
Pois se Deus, o eterno sábio,
Permite (que enigma atroz!)
Que a idéia morra no lábio
Como a verdade na voz;
Se tudo tomba, naufraga,
Da vida nos vagalhões;
E a espuma desfaz a vaga,
E as dores as ilusões,
Se nesta maré maldita,
A alma – concha de luz –
Mal pode pálida e aflita
Buscar o farol da Cruz;
Se tudo mente, atraiçoa
Aqui, se tudo é mentira,
Poeta! abraça-te à lira,
Alma – abre as asas e voa,
Rasgas das nuvens o véu
Corta o Oceano do azul,
E vai, andorinha exul,
Fazer teu ninho no céu.
* * *
ROMÂNTICO
Eu conheci em tempos idos
Um bom rapaz, modesto e nobre,
D'olhos leais e refletidos,
Um nada ingênuo e um nada pobre.
Amigo certo: na hora extrema
Entre as procelas do perigo,
Ele mostrava o oiro, a gema
Do coração de um bom amigo.
Sóbrio e robusto como um cedro,
Tinha a altivez de uma alma honesta,
Nunca negou como S. Pedro
Na hora trágica e funesta.
Tudo naquela construção
Era de boa qualidade:
O verbo, o pulso, o coração,
Até a própria ingenuidade.
Sempre pacífico e tranquilo
Nunca passou além da meta;
E até possuía um bom estilo
E inspirações de um bom poeta.
Eis se não quando o ambiente cálido
Tolda-se a esse independente,
À cor fatal de um rosto pálido
E ao fogo de um olhar ardente.
Dera-se o caso que eu lastimo
Um caso ser dos mais triviais:
Vira uma moça, um beijo, um mimo,
E apaixonou-se, nada mais.
Somente o bom e heroico moço
Pôs-se a construir casas no ar;
Cada castelo era um colosso
Que ninguém pode imaginar.
Balcões abertos ao luar
Com madressilvas e jasmins,
Até escadas para trepar
Feitas de seda... e bandolins.
Tantos projetos ideais
Como de vagas tem o Atlântico,
Pois o infeliz, além do mais,
Trágico fim! Fez-se romântico.
Passava as noites ao relento
Com os olhos fitos na janela
Aonde apenas um momento
Tomava o fresco a sua bela.
E enquanto os outros mais felizes
Tinham palestras animadas
Com ela, o rei dos infelizes
Cantava ao luar canções magoadas.
Julgou-se nobre e grande e belo
(O que fazia a tal escola!)
Que aparelhou-se de um cutelo
E usava capa à espanhola.
Assim o grande desgraçado
Tantas asneiras praticou,
Até que enfim viu-se arruinado
Como um navio que encalhou.
E quando a moça, há muito farta
Já de aturá-lo, foi casar-se,
Ele enviou-lhe numa carta:
A maldição pra suicidar-se.
Porém num ímpeto leonino,
Resto de orgulho, inda arrancou-se
À garra adunca do destino
Que tanto tempo atado o trouxe.
Ah! quis viver para ser homem!
Mas, tanto olhava e suspirava
Que novas mágoas o consomem
Vendo-se vivo com tal cara.
Pois o infeliz que se viu salvo
Do romantismo ao vírus rábico
Viu que ficou, além de calvo,
Com a boca torta e o olhar estrábico...
* * *
ROMARIA DOS SONHOS
I
Romaria dos sonhos, onde vais
Por estas noites calmas e piedosas?
De quem houveste as asas virginais
Que te elevam às coisas luminosas?
Debalde a Dor reclama-te, não cais!
E vais subindo às plagas gloriosas,
Te vestindo de coisas ideais:
Lírios, jasmins, angélicas e rosas.
II
Romaria dos sonhos do passado
Por que buscas as névoas do presente?
Por que deixaste o tálamo sagrado
Onde dormias pálida e doente?
Volta ao teu leito, doida impenitente,
De saudade e tristeza perfumado.
Deixa a luz do luar brando e clemente
Mais branco que uma alcova de noivado!
III
Bates as asas trêmulas, inquietas,
Doce inocente, doce peregrina,
Como brancas e leves borboletas
Em derredor de um cálix que se inclina.
Segues na correnteza cristalina
Das tuas vãs aspirações secretas,
E a luz que te incendeia a azul retina
É a que incendeia o cérebro dos Poetas.
IV
Por que sobes vaidosa e confiada
Pra onde não há pouso e lenitivo,
Se tens de regressar dessa jornada
Cheia de tédio ao leito primitivo?
Antes repouses pálida e cansada
Buscando no passado um paliativo...
Romaria dos sonhos, malfadada,
O teu destino é o de um balão cativo!
* * *
RUÍNAS
Quando, solene e grave, a vigília angustiosa
Vem despertar a Dor que dorme no meu peito,
E vejo-te passar, pálida, silenciosa,
Triste visão gentil de meu sonho desfeito;
Oh meu altar de crença! Altar branco e risonho
Do meu amor que foi e não mais voltou, não!
Quando na insônia vens visitar-me suponho
Que és a mesma que eu trouxe a rir, no coração!
* * *
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