“Aislar a un autor de su época es el
método más seguro para no entenderlo.”MENÉNDEZ Y PELAYO
TEM SIDO inúmeras vezes ressaltado o fato de as correntes literárias vigentes na Metrópole no século passado e do início deste gastarem uma ou mais décadas para se espraiar pelas províncias. Por isso não é de estranhar que fosse ainda romântica a poesia cearense por volta de 1885 (ano dos Poemas e Versos, de Cipriano de Miranda), quando no Rio de Janeiro já triunfara o chamado Parnasianismo, tendo Alberto de Oliveira publicado, no ano anterior, as Meridionais e, nesse mesmo ano de 85, os Sonetos e Poemas.
Castro Alves morrera em 1871, e com seu desaparecimento declinara o prestígio da escola de que fora o último porta-voz nacional. E doze anos depois, ao tempo em que, na Corte, os derradeiros românticos eram furiosamente atacados pelos propagandistas da Idéia Nova, morria tuberculoso, num leito da Santa Casa de Misericórdia, em Fortaleza, o poeta Barbosa de Freitas, deixando ecoar, por largo tempo ainda, na memória do povo cearense, as notas ora tristonhas ora altissonantes de sua lira castro-alvesca. Já nem falamos de Juvenal Galeno, que este, além de vir da segunda geração romântica, é uma individualidade ímpar, com seus versos de sabor genuinamente popular.
Antônio Sales, em seu livro de estréia, de 1890, mostra apenas momentos parnasianos; e alguns sonetos descritivos que, à primeira vista, podem parecer da corrente de Raimundo Correia, traem na verdade influência da Escola Mineira, como observou Otacílio Colares, que também lhe assinalou os toques de Gonçalves Crespo. O mesmo ocorre com o segundo livro de Sales, este de 1895.
De forma que no Ceará, somente depois de 1903, com o soneto "A Aranha", de Álvaro Martins, tivemos a1go de herediano. Antônio de Castro publicaria, a partir de 1905, sonetos de notas parnasianas, como observa Dolor Barreira. Alf. Castro, que em 1906 lançara um livro de sabor romântico, seria, de 1907 em diante, o mais perfeito parnasiano de seu tempo, burilando o verso com a serenidade e a perícia de Francisca Júlia nos Mármores. De 1909 são talvez os mais trabalhados sonetos de Fiúza de Pontes, que nesse mesmo ano faleceria. Não devemos, pois, falar em Parnasianismo cearense no século XIX, porque essa corrente teve aqui seus impulsos dignos de nota nos primeiros anos do século que atravessamos, e seu apogeu pode ser situado, grosso modo, por volta de 1920, com os citados Antônio de Castro e Alf. Castro, Cruz Filho, Antônio Sales (já de volta do Rio), Irineu Filho, Mário Linhares, Júlio Maciel (de notas também simbolistas), Carlos Gondim, Otacílio de Azevedo. Antônio Furtado e outros.
Com o Simbolismo, porém, não houve esse retardamento de que temos falado; é que, embora tenha esse movimento raízes no chamado Decadentismo, cujos prógonos se confundem com os precursores do próprio Parnasianismo, é tida como data oficial da fundação do Simbolismo brasileiro o ano de 1893, data da publicação dos Broquéis, de Cruze Sousa, e precisamente nesse ano surgiu o livro Phantos, do cearense Lopes Filho, unanimemente considerado como fruto do Decadismo, como também se dizia.
Em "Nota Editorial" à obra completa de Cruz e Sousa (edição do centenário), escreveu Afrânio Coutinho: "No Brasil os ideais 'decadistas' já desde 1887 se haviam feito sentir. Mas foi em 1891, no jornal Fôlha Popular, que um grupo, constituído de B. Lopes, Oscar Rosas, Cruz e Sousa, Emiliano Perneta, lançou o primeiro manifesto renovador. Em 1892, no Ceará, uma sociedade literária, a 'Padaria Espiritual', era fundada sob a mesma inspiração, e, em 1893, Cruz e Sousa inaugurava a nova escola com os livros Missal e Broquéis."
A Padaria Espiritual, como se sabe, foi uma das mais notáveis agremiações provincianas de que temos notícia, chegando seu nome a se espalhar por todo o País, repercutindo triunfantemente no Rio a originalidade de seu programa e o fruto de seus trabalhos. "Padeiros" denominavam-se todos os sócios, sendo "Padeiro-Mor" o Presidente, "Forneiros", os Secretários, "Gaveta", o Tesoureiro, "Guarda-Livros" (na acepção intrínseca da palavra, – diziam), o Bibliotecário; os demais eram "Amassadores". Às sessões chamavam de "fornadas", e eram realizadas no "Forno", e seu jornal intitulava-se, é claro, O Pão. No seu "Programa de Instalação", advertia-se, entre muitas outras coisas, que todos teriam um nome de guerra único. Era proibido o uso de palavras estranhas ao vernáculo, "sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes"; também era proibido fazer qualquer referência à rosa de Malherbe, assim como "escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns". Igualmente era vedado aos "padeiros" o tom oratório, "sob pena de vaia", assim como, ainda a declamação ao piano. "Medonho" era a alcunha que se deveria dar a "todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos", julgando-se indigna de publicidade "qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhas à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc. etc."
Há muito de galhofa nessa agremiação de moços, principalmente em sua primeira fase (houve duas, sendo a segunda mais compenetrada), mas é digno de nota o espírito de originalidade que os movia; não deixa de ser admirável que alguns rapazes, em plena Província, no século passado, já houvessem aborrecido certos clichês literários, como a rosa de Malherbe, e se insurgissem, trinta anos antes da Semana de Arte Moderna, contra a presença de plantas e animais exóticos em nossa literatura!
Admitamos que a Padaria Espiritual não tenha nascido sob a mesma inspiração do grupo a que pertencia Cruz e Sousa, como disse Afrânio Coutinho e transcrevemos linhas atrás. Na verdade, Antônio Sales foi o idealizador da sociedade, e ele próprio (embora não o fosse ainda genuinamente) se considerava parnasiano. Prefaciando o citado livro de Lopes Filho, disse-o claramente: "Eu já te disse que sou um Parnasiano, Parnasiano fanático pela música impecável do verso, pela precisão extrema da imagem, pelo amanho meticuloso da frase. Tu és, ao contrário, um insubmisso, um revolucionário, deixando que a idéia te caia da pena na sua conformação inicial, estenografando maquinalmente a linguagem de tua alma." Nas fileiras da agremiação, porém, não houve um parnasiano puro (a Padaria Espiritual viveu de 1892 a 1898), e simbolistas foram, sem dúvida, Tibúrcio de Freitas, Lopes Filho, Cabral de Alencar e Lívio Barreto, como observa Braga Montenegro, que acrescenta: "Deste último os 'padeiros' publicariam, em 1897, o livro póstumo, Dolentes, quiçá o único a merecer destaque."
O livro de Lívio Barreto é, efetivamente, um dos mais importantes de quantos publicou a Biblioteca da Padaria Espiritual, e sem dúvida o livro máximo do Simbolismo cearense. A Toa deveria intitular-se, e assim está anunciado, entre outros, na 4ª capa dos Flocos, de Sabino Batista. O próprio autor mudou-lhe o título, que não agradara aos "padeiros", na sessão de 19 de outubro de 1894, ano aliás do livro de Sabino.
Apesar de sua importância e mesmo do seu valor como obra literária, não vamos afirmar que se trate da obra definitiva de um autor absolutamente senhor de sua técnica, pois é, na verdade, o livro único de um jovem de grande talento e de extraordinária sensibilidade, mas livro que não deixa de pecar, até certo ponto, pela falta de unidade, encontrando-se, ao lado de produções tipicamente simbolistas (as melhores e mais importantes), outras tantas de sabor romântico e ainda outras borrifadas de notas parnasianas. Cremos ser isto, porém, irrelevante em face da grandeza de suas melhores páginas. Mais tivesse vivido o Poeta, e teria provavelmente reunido apenas os poemas onde houvesse predomínio das notas simbolistas, pois revelam estas sua feição mais característica.
No poema "O Náufrago", de 1892, é visível a presença do Romantismo, quer nestes versos:
Eis-me náufrago e só, na vastidão
Da praia desolada,
Aonde o mar – indômito leão –
Esmaga a onda fria e angustiada.
Quer nestes outros:
Eis-me náufrago e só! Oh! minha irmã,
Meu derradeiro altar imaculado!
Choro por ti à luz desta manhã;
Romântico é também o poema "Estóico" (não obstante trazer o data de 1894), onde se encontram versos assim:
A moça, em pranto,
Estende a boca súplice, sequiosa...
O último beijo! E lívida de espanto
Vê-lhe nas mãos a arma criminosa.
Volve-lhe o moço: (a voz maviosa e doce
Não lhe traía o imenso desespero)
– Amei-te pura! é pura que eu te quero!
Pura não és! Adeus!... E apunhalou-se!
Já o poema "No Campo" apresenta notas daquele parnasianismo descritivo que nos veio da influência de Gonçalves Crespo:
Doiram-se ao longe os cimos dos oiteiros
Aos moribundos raios do sol-poente;
Recolhe o gado ao canto dos vaqueiros,
E os bezerrinhos berram longamente.
A noite desce religiosamente,
Recebem-na as boninas nos canteiros.
E as corujas nas cercas, nos aceiros,
Soltam seus pios, lúgubres, plangentes.
Também estes alexandrinos lembram algo da escola que ainda, não se firmara no Nordeste (note-se a epanalepse no 1º verso):
Chorava o mar embaixo e o céu no alto chorava.
Frio, o vento gemia entre as cordagens; fria
A noite sobre o oceano, entre trevas, descia.
("No Mar")
Do Romantismo herdara o Poeta algumas características formais: a colocação do clítico (que valha-me); a síncope, assinalada (esp'rança), ou não, como nos casos em que: se deve ler vertij'nosa, duv'da, etc., embora esteja grafado vertiginosa, dúvida, etc.; o suarabácti ou anaptixe, constante em sua poesia, e que faz com que imaginemos uma vogal de apoio na contagem métrica (insubimissa, subiterrâneo, etc); as rimas toantes em poemas de rimas consoantes (virgem/vertigem, bravas/ palavras), e ainda umas tantas irregularidades, que não chegavam a ser irregularidades nas mãos dos românticos.
Quanto à colocação do pronome átono, são incontáveis os versos de grandes poetas daquela corrente em que se encontra a ênclise posteriormente condenada, como naquele de Castro Alves em "Horas de Saudade": Que levaste-me a vida entrelaçada.
Não esqueçamos, porém, que Cruz e Sousa, precisamente no livro em que inaugurou a poesia simbolista no Brasil, tem versos como este, do soneto "Incensos": Que elevam-se aos espaços, ondulantes; ou ainda este, de "Lubricidade": Que dá-te medo e dá-te pesadelos.
Por sua vez, a síncope, presente em todos os nossos românticos, seja expressa, como em Gonçalves Dias, em "Tabira" (Raso outeiro ali perto se of'rece), seja não expressa, como em Álvares de Azevedo, em "O Conde Lopo" (O perfume das trovas vertiginava), não foi usada somente pelos românticos. Embora condenada pelos tratadistas do Parnasianismo, vamos encontrá-la em Raimundo Correia (Ora, túrgido, a c'roa vitoriosa) e Alberto de Oliveira, que usou também outros tipos de metaplasmo.
Mas voltemos aos Broquéis, e transcrevamos este verso de "Satã": Vai c'roado de pâmpanos venustos. Aí está a síncope, no maior de nossos simbolistas.
Quanto à vogal de apoio, a que aludimos, e que aparece com tanta insistência na poesia de Lívio Barreto, figurou tantas vezes em versos de Gonçalves Dias que Manuel Bandeira chegou a afirmar: "o brasileiro de fala mole se está traindo a cada passo no suarabácti", pois o poeta maranhense escreveu de modo que se pronunciasse, "brasileirissimamente", como ainda observa Bandeira, subimarinha ("Os Suspiros"), obijeto ("Solidão"), crípita ("A Morte é Vária"), iguinóbil ("I-Juca-Pirama"), etc.
De Fagundes Varela muitos exemplos poderíamos citar; baste-nos, porém, este, de "Eu Amo a Noite"; As águas torvas de ignotos rios. De Castro Alves, temos no citado poema "Horas de Saudade" este: Há ritmo e cadência no teu passo!
E justamente essa palavra ritmo, também com suarabácti (rí-ti-mo), é que vamos encontrar no soneto "Pomo do Mal", de um decadentista, Fontoura Xavier: Como um canto de morte ao ritmo dum sonho. Acrescente-se ainda que o simbolista Maranhão Sobrinho, que publicaria seu primeiro livro em 1908, escreveu este alexandrino no soneto "Interlunar": Tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio, em que temos de ler o-quis-si-gê-nio.
Assinale-se, de passagem, que os poetas modernos têm recorrido ao suarabácti, em poemas de metro regular; é que aspiram à brasilidade máxima, e nosso povo comumente apela para a vogal de apoio, ao pronunciar palavras como subimarino, abissoluto, peneu, adevogado, etc.
Não foram poucas as rimas toantes de que se valeu o poeta granjense ao longo de seu livro: paragens/margens, tempos/templos, leite/corpete, virgem/vertigem, etc. Nem será necessária a transcrição de versos assinados por Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Machado de Assis e outros para demonstrar que rimas desse tipo faziam parte do arsenal romântico, sendo mesmo indefectíveis os duetos virgem/vertigem e festa/orquestra.
É perfeitamente natural, portanto, que um jovem poeta, embora tentando a originalidade através de novas formas, ainda recebesse influência dos antigos mestres, o que aliás ocorreu com todos os escritores de sua época: Antônio Sales, em seu segundo livro, publicado no ano da morte de Lívio, usou, num poema de rimas consoantes, "Lendo Versos Escritos Outrora", a rima mármore/ árvore.
Os mais apegados aos cânones rígidos da versificação parnasiana devem ter estranhado que Lívio Barreto usasse rimas como vácuos/fracos, lousas/rosas, suspirava/cara ou de singular com plural, como religiosamente/plangentes, embora lhes agradassem as rimas compostas como pântanos/canta-nos, tão do agrado de Emílio de Meneses...
Com relação às primeiras, além de Lívio ser um tanto rebelde às regras dos tratados (como seu companheiro Lopes Filho), podemos lembrar que um poeta da estatura de Luís Delfino se deu o luxo de rimar celeuma/emblema, Danaide/divindade, auréola/pérola, etc., tudo isso em Algas e Musgos, o mais parnasiano de seus livros.
Com respeito às segundas, há precedentes ilustres, pois o Poeta máximo de nossa língua escrevera:
No seu regaço os cantos que banhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baixos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado...
De Castro Alves é famosa a estrofe final de "O Navio Negreiro", onde esmaga e plaga vão rimar
com vagas.
Diversas vezes escreveu Lívio Barreto fráguas (fornalha ou, em sentido figurado, amarguras), quando deveria ter escrito fraga (rochedo, escolho), como neste passo:
Também, mergulhador, desci ousado,
Rasgando as ondas, contornando as fráguas
Da vida, mar indômito, assanhado,
Com o peito cheio de canções e mágoas.
Errou o Poeta, seduzido pela rima. Ocorre, entretanto que, como ele, figuras de prestígio nacional fizeram o mesmo. Olavo Bilac, em "O Caçador de Esmeraldas", depois de falar nas águas das lagoas, referiu-se aos rios, que iam, "em quedas e bramidos", mordendo os alcantis, roncando pelas fráguas. O mesmo fizeram Alberto de Oliveira ("A Torrente"), Francisca Júlia ("A Um Poeta"), Fontoura Xavier ("Um Prólogo"), e vários, vários outros.
São horas de advertir que, atrás de todo esse arrazoado, não nos move, de maneira alguma, a intenção de pretender provar que o poeta cearense era perfeito, e que todas as suas irregularidades formais foram absolutamente conscientes. Lívio Barreto morreu muito jovem para que se diga que sua obra estava já cristalizada em sua feição definitiva. Já lhe notamos certa falta de unidade no livro. Apenas queremos deixar claro que a grande maioria de suas excentricidades artesanais se encontra, embora menos ostensivamente, em grandes vultos de nossa literatura poética. Por outro lado, não se deve esquecer que o Simbolismo rompeu com uma série de imposições da versificação castilhiana, e o poeta cearense, bem antes de Emiliano Perneta, já desarticulava o ritmo de seus versos penumbristas. O que parece fora de dúvida é que o Simbolismo de Lívio Barreto não foi bebido em Cruz e Sousa, como o de muitos epígonos, mas em versos dalém-mar; dir-se-ia que mesmo sem o famoso grupo da Folha Popular, do Rio de Janeiro, ele seria simbolista, e por isso disse Mário Linhares que "ele teve a intuição do Simbolismo, antes mesmo de conhecer coisa alguma dessa escola". Após lembrar que a característica essencial dos decadentistas é a obscuridade, afirma ainda o poeta e ensaísta que "os versos de Lívio Barreto não chegaram, pois, a sofrer influência da escola de que foi Cruz e Sousa o nosso gonfaloneiro glorioso". Não chegou a receber influência da escola brasileira, esclareçamos para evitar quaisquer dúvidas, mas impregnou-se da roxa melancolia de Anto. Em suas Cartas Literárias relembrando os tempos da "Padaria", Adolfo Caminha escreveu: "O único volume do Só, que aparecera misteriosamente na Província, andava de mão em mão, era lido e relido, e entrava-nos pela alma como um jorro de luz setentrional, como uma onda quente de vida nova. O Só era a nossa bíblia, o nosso encanto, o nosso livro amado." Artur Teófilo conta, no artigo em que traça o perfil biográfico do Poeta, que recebera de Lívio, após uma noite em que os dois estiveram relendo o livro de Antônio Nobre, um soneto de concepção estranha – segundo diz –, parecidíssimo com os do poeta português, tal era sua capacidade de assimilação. Poemas assim, porém, ele os fazia por brincadeira, visto não querer escravizar-se a nenhum modelo. Realmente, uma coisa é imitar e outra, bem diversa, receber influência, coisa de que nem os mais velhos se livram muitas vezes.
Pelo menos quanto à versificação Lívio Barreto parece haver seguido bem de perto, em algumas irregularidades, o grande simbolista luso. Na 2ª estrofe de "Ao Canto do Lume", do Só, datado de 1891, temos, além da musicalidade do trímetro, de que tiraria notável efeito o poeta cearense, em "Os Cravos Brancos", o suarabácti no 2º verso (Josephe) e ainda o hiato no verso 3º (na/áurea):
Faz tanto frio. (Só de a ver, me gela, a cama...)
Que frio! Olá, Joseph! Deita mais carvão!
E quando todo se extinguir na áurea chama,
Eu deitarei (para que serve? já não ama)
Às cinzas brancas, o meu pobre coração!
Liberato Nogueira, em artigo publicado em 1909, afirmava: "Se por vezes [Lívio] chegava ao delírio num áspero movimento de tresloucado, outras dedilha monodias ao sabor das trovas singelas. Ressaltam pelos seus descuidos alguns defeitos de metrificação, irregularidade da cesura e deslocação do hemistíquio." É que Liberato Nogueira estava apegado às regras do tratado de Castilho, seguido por Bilac e Guimarães Passos, e desconhecia talvez que Antônio Nobre, cujo livro surgiu em 1892, trazia inúmeros versos irregularíssimos, trímetros e alexandrinos sem cesura. Nele certamente encontrou justificativa o jovem cearense, para tornar-se um dos precursores da. desarticulação rítmica no Brasil. Sim, porque as irregularidades métricas existentes em vários de seus versos, como nos de "Os Cravos Brancos", por exemplo, não são, de maneira alguma, fruto do desconhecimento das técnicas versificatórias; como dissemos, talvez ele se libertasse mais tarde de alguns tiques românticos, mas essa variação de ritmos o acompanharia certamente, pois a elas o autorizavam as excentricidades do livro amado dos padeiros", e com elas sintonizava perfeitamente a sua vocação de rebelado. Se assim não fosse, teria o Poeta modificado os versos do citado poema, composto em 1893. Desse mesmo ano é por sinal o soneto "Lágrimas" e quem poderá dizer que o autor de tão bela produção desconhecia as leis do verso?
Como em Antônio Nobre, a Lua exercia extraordinário fascínio sobre Lívio Barreto e assim é que a "monja da noite" aparece, ungida dum halo místico, em vários de seus poemas, como "Dolentes", "Sombra e Luar", "Pelo País do Sonho", "Lágrimas", "Poemas Noturnos", "Ao Luar" e outros mais, inclusive "O Sono do Coração", que inexplicàvelmente não foi incluído no seu livro, mas que fomos encontrar em O Pão nº 30, de 15-12-1895. É datado de 1893, sendo de junho ou julho, uma vez que no jornal está grafado Juho, faltando exatamente a letra que distingue a grafia entre os dois meses. Ei-lo:
Silêncio na rua. Que longa tristeza
Paira no ar frio e pesado:
Oh, lua de Junho, que incutes tristeza
Como um castelo abandonado;
Como a visão de um mau passado,
Como uma vela ao dia acesa!
Nas telhas das casas distantes, cintilas
Pólen de prata do infinito!
Oh, lua de Junho, das tuas pupilas,
Silenciosa, sem um grito
Deixas rolar o pranto aflito
Em ondas claras e tranqüilas.
O vento tardio da noite murmura
No campanário abandonado.
Oh, lua de Junho, tão triste, tão pura
No teu roupão aurilavrado,
És como um cravo desbrochado
No azul monótono da altura.
As aves noturnas, piando, na Igreja
Oh, lua de Junho, no alto sobeja
A luz que deixas, pelos ares,
Em flocos, ir cair nos mares
Onde as espumas têm inveja.
Naquela janela sonhando ao relento
Deixei ficar meu coração,
Oh, lua de Junho, zombando do vento
Cantando a mística canção
Do seu amor, cheia de unção
E de pesar, como um lamento!
De tarde, que ainda não era o sol posto,
O fui deixar n'essa janela;
Oh, lua de junho, vieste, e no posto
Como uma boa sentinela
Achaste-o ainda, que hora aquela!
Inda a velar ao frio exposto.
Faz frio. Que importa que gele a neblina
Quando se dorme e sonha e esquece?
Oh, lua de Junho, se a morte fulmina,
O sono as dores adormece!
Oh, coração, dorme...
............................................ Parece
Que uma mulher o afaga e nina!
Este poema desconhecido, com sua atmosfera mística, sua impressionante musicalidade, em que se associam versos hendecassílabos iâmbico-anapésticos e octossílabos, poderia figurar em qualquer antologia do Simbolismo brasileiro; e não só de seu ritmo, como também da repetição do início do 3º verso, em que surge o fascínio da Lua, provém grande parte de sua magia encantatória.
Lívio Barreto nasceu na fazenda dos Angicos, distrito de Iboaçu, comarca de Granja, no dia 18 de fevereiro de 1870, há cem anos, portanto, e faleceu, vítima de congestão cerebral, em Camucim, no dia 29 de setembro de 1895, não com 24 anos de idade, como registram Waldemiro Cavalcânti, no prefácio do livro póstumo, Antônio Sales, na "História da Literatura Cearense", Mário Linhares, em Poetas Esquecidos e na História Literária do Ceará e Dolor Barreira, na História da Literatura Cearense, nem ainda, com 26, como escreveu Rodrigues de Carvalho, em conhecido trabalho sobre as letras do Ceará, mas com 25 anos, 7 meses e 11 dias.
Editando-lhe piedosamente o livro de poemas, a Padaria Espiritual fez justiça à memória do notável e desventurado Poeta, e salvou do esquecimento o mais robusto e genuíno fruto do Simbolismo em nosso Estado.
E de tal modo avultou, no cenário de sua época, a poesia dos Dolentes, que Rodrigues de Carvalho, pertencente ao Centro Literário, rival da Padaria Espiritual (e que por isso não via com bons olhos os rapazes do "forno"), não conteve esta expressão magnificante, ao falar de Lívio Barreto, quatro anos depois de sua morte: "Foi um gênio como poeta!"
SÂNZIO DE AZEVEDO
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