domingo, 30 de agosto de 2009

RETRATO DE LÍVIO BARRETO

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(LÁPIS DE OTACÍLIO AZEVEDO)


sábado, 29 de agosto de 2009

LÍVIO BARRETO E O SIMBOLISMO NO CEARÁ


“Aislar a un autor de su época es el
método más seguro para no entenderlo.”
MENÉNDEZ Y PELAYO


TEM SIDO inúmeras vezes ressaltado o fato de as correntes literárias vigentes na Metrópole no século passado e do início deste gastarem uma ou mais décadas para se espraiar pelas províncias. Por isso não é de estranhar que fosse ainda romântica a poesia cearense por volta de 1885 (ano dos Poemas e Versos, de Cipriano de Miranda), quando no Rio de Janeiro já triunfara o chamado Parnasianismo, tendo Alberto de Oliveira publicado, no ano anterior, as Meridionais e, nesse mesmo ano de 85, os Sonetos e Poemas.
Castro Alves morrera em 1871, e com seu desaparecimento declinara o prestígio da escola de que fora o último porta-voz nacional. E doze anos depois, ao tempo em que, na Corte, os derradeiros românticos eram furiosamente atacados pelos propagandistas da Idéia Nova, morria tuberculoso, num leito da Santa Casa de Misericórdia, em Fortaleza, o poeta Barbosa de Freitas, deixando ecoar, por largo tempo ainda, na memória do povo cearense, as notas ora tristonhas ora altissonantes de sua lira castro-alvesca. Já nem falamos de Juvenal Galeno, que este, além de vir da segunda geração romântica, é uma individualidade ímpar, com seus versos de sabor genuinamente popular.
Antônio Sales, em seu livro de estréia, de 1890, mostra apenas momentos parnasianos; e alguns sonetos descritivos que, à primeira vista, podem parecer da corrente de Raimundo Correia, traem na verdade influência da Escola Mineira, como observou Otacílio Colares, que também lhe assinalou os toques de Gonçalves Crespo. O mesmo ocorre com o segundo livro de Sales, este de 1895.
De forma que no Ceará, somente depois de 1903, com o soneto "A Aranha", de Álvaro Martins, tivemos a1go de herediano. Antônio de Castro publicaria, a partir de 1905, sonetos de notas parnasianas, como observa Dolor Barreira. Alf. Castro, que em 1906 lançara um livro de sabor romântico, seria, de 1907 em diante, o mais perfeito parnasiano de seu tempo, burilando o verso com a serenidade e a perícia de Francisca Júlia nos Mármores. De 1909 são talvez os mais trabalhados sonetos de Fiúza de Pontes, que nesse mesmo ano faleceria. Não devemos, pois, falar em Parnasianismo cearense no século XIX, porque essa corrente teve aqui seus impulsos dignos de nota nos primeiros anos do século que atravessamos, e seu apogeu pode ser situado, grosso modo, por volta de 1920, com os citados Antônio de Castro e Alf. Castro, Cruz Filho, Antônio Sales (já de volta do Rio), Irineu Filho, Mário Linhares, Júlio Maciel (de notas também simbolistas), Carlos Gondim, Otacílio de Azevedo. Antônio Furtado e outros.
Com o Simbolismo, porém, não houve esse retardamento de que temos falado; é que, embora tenha esse movimento raízes no chamado Decadentismo, cujos prógonos se confundem com os precursores do próprio Parnasianismo, é tida como data oficial da fundação do Simbolismo brasileiro o ano de 1893, data da publicação dos Broquéis, de Cruze Sousa, e precisamente nesse ano surgiu o livro Phantos, do cearense Lopes Filho, unanimemente considerado como fruto do Decadismo, como também se dizia.
Em "Nota Editorial" à obra completa de Cruz e Sousa (edição do centenário), escreveu Afrânio Coutinho: "No Brasil os ideais 'decadistas' já desde 1887 se haviam feito sentir. Mas foi em 1891, no jornal Fôlha Popular, que um grupo, constituído de B. Lopes, Oscar Rosas, Cruz e Sousa, Emiliano Perneta, lançou o primeiro manifesto renovador. Em 1892, no Ceará, uma sociedade literária, a 'Padaria Espiritual', era fundada sob a mesma inspiração, e, em 1893, Cruz e Sousa inaugurava a nova escola com os livros Missal e Broquéis."
A Padaria Espiritual, como se sabe, foi uma das mais notáveis agremiações provincianas de que temos notícia, chegando seu nome a se espalhar por todo o País, repercutindo triunfantemente no Rio a originalidade de seu programa e o fruto de seus trabalhos. "Padeiros" denominavam-se todos os sócios, sendo "Padeiro-Mor" o Presidente, "Forneiros", os Secretários, "Gaveta", o Tesoureiro, "Guarda-Livros" (na acepção intrínseca da palavra, – diziam), o Bibliotecário; os demais eram "Amassadores". Às sessões chamavam de "fornadas", e eram realizadas no "Forno", e seu jornal intitulava-se, é claro, O Pão. No seu "Programa de Instalação", advertia-se, entre muitas outras coisas, que todos teriam um nome de guerra único. Era proibido o uso de palavras estranhas ao vernáculo, "sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes"; também era proibido fazer qualquer referência à rosa de Malherbe, assim como "escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns". Igualmente era vedado aos "padeiros" o tom oratório, "sob pena de vaia", assim como, ainda a declamação ao piano. "Medonho" era a alcunha que se deveria dar a "todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos", julgando-se indigna de publicidade "qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhas à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc. etc."
Há muito de galhofa nessa agremiação de moços, principalmente em sua primeira fase (houve duas, sendo a segunda mais compenetrada), mas é digno de nota o espírito de originalidade que os movia; não deixa de ser admirável que alguns rapazes, em plena Província, no século passado, já houvessem aborrecido certos clichês literários, como a rosa de Malherbe, e se insurgissem, trinta anos antes da Semana de Arte Moderna, contra a presença de plantas e animais exóticos em nossa literatura!
Admitamos que a Padaria Espiritual não tenha nascido sob a mesma inspiração do grupo a que pertencia Cruz e Sousa, como disse Afrânio Coutinho e transcrevemos linhas atrás. Na verdade, Antônio Sales foi o idealizador da sociedade, e ele próprio (embora não o fosse ainda genuinamente) se considerava parnasiano. Prefaciando o citado livro de Lopes Filho, disse-o claramente: "Eu já te disse que sou um Parnasiano, Parnasiano fanático pela música impecável do verso, pela precisão extrema da imagem, pelo amanho meticuloso da frase. Tu és, ao contrário, um insubmisso, um revolucionário, deixando que a idéia te caia da pena na sua conformação inicial, estenografando maquinalmente a linguagem de tua alma." Nas fileiras da agremiação, porém, não houve um parnasiano puro (a Padaria Espiritual viveu de 1892 a 1898), e simbolistas foram, sem dúvida, Tibúrcio de Freitas, Lopes Filho, Cabral de Alencar e Lívio Barreto, como observa Braga Montenegro, que acrescenta: "Deste último os 'padeiros' publicariam, em 1897, o livro póstumo, Dolentes, quiçá o único a merecer destaque."
O livro de Lívio Barreto é, efetivamente, um dos mais importantes de quantos publicou a Biblioteca da Padaria Espiritual, e sem dúvida o livro máximo do Simbolismo cearense. A Toa deveria intitular-se, e assim está anunciado, entre outros, na 4ª capa dos Flocos, de Sabino Batista. O próprio autor mudou-lhe o título, que não agradara aos "padeiros", na sessão de 19 de outubro de 1894, ano aliás do livro de Sabino.
Apesar de sua importância e mesmo do seu valor como obra literária, não vamos afirmar que se trate da obra definitiva de um autor absolutamente senhor de sua técnica, pois é, na verdade, o livro único de um jovem de grande talento e de extraordinária sensibilidade, mas livro que não deixa de pecar, até certo ponto, pela falta de unidade, encontrando-se, ao lado de produções tipicamente simbolistas (as melhores e mais importantes), outras tantas de sabor romântico e ainda outras borrifadas de notas parnasianas. Cremos ser isto, porém, irrelevante em face da grandeza de suas melhores páginas. Mais tivesse vivido o Poeta, e teria provavelmente reunido apenas os poemas onde houvesse predomínio das notas simbolistas, pois revelam estas sua feição mais característica.
No poema "O Náufrago", de 1892, é visível a presença do Romantismo, quer nestes versos:

Eis-me náufrago e só, na vastidão
Da praia desolada,
Aonde o mar – indômito leão –
Esmaga a onda fria e angustiada.

Quer nestes outros:

Eis-me náufrago e só! Oh! minha irmã,
Meu derradeiro altar imaculado!
Choro por ti à luz desta manhã;

Romântico é também o poema "Estóico" (não obstante trazer o data de 1894), onde se encontram versos assim:

A moça, em pranto,
Estende a boca súplice, sequiosa...
O último beijo! E lívida de espanto
Vê-lhe nas mãos a arma criminosa.

Volve-lhe o moço: (a voz maviosa e doce
Não lhe traía o imenso desespero)
– Amei-te pura! é pura que eu te quero!
Pura não és! Adeus!... E apunhalou-se!

Já o poema "No Campo" apresenta notas daquele parnasianismo descritivo que nos veio da influência de Gonçalves Crespo:

Doiram-se ao longe os cimos dos oiteiros
Aos moribundos raios do sol-poente;
Recolhe o gado ao canto dos vaqueiros,
E os bezerrinhos berram longamente.

A noite desce religiosamente,
Recebem-na as boninas nos canteiros.
E as corujas nas cercas, nos aceiros,
Soltam seus pios, lúgubres, plangentes.

Também estes alexandrinos lembram algo da escola que ainda, não se firmara no Nordeste (note-se a epanalepse no 1º verso):

Chorava o mar embaixo e o céu no alto chorava.
Frio, o vento gemia entre as cordagens; fria
A noite sobre o oceano, entre trevas, descia.

("No Mar")


Do Romantismo herdara o Poeta algumas características formais: a colocação do clítico (que valha-me); a síncope, assinalada (esp'rança), ou não, como nos casos em que: se deve ler vertij'nosa, duv'da, etc., embora esteja grafado vertiginosa, dúvida, etc.; o suarabácti ou anaptixe, constante em sua poesia, e que faz com que imaginemos uma vogal de apoio na contagem métrica (insubimissa, subiterrâneo, etc); as rimas toantes em poemas de rimas consoantes (virgem/vertigem, bravas/ palavras), e ainda umas tantas irregularidades, que não chegavam a ser irregularidades nas mãos dos românticos.
Quanto à colocação do pronome átono, são incontáveis os versos de grandes poetas daquela corrente em que se encontra a ênclise posteriormente condenada, como naquele de Castro Alves em "Horas de Saudade": Que levaste-me a vida entrelaçada.
Não esqueçamos, porém, que Cruz e Sousa, precisamente no livro em que inaugurou a poesia simbolista no Brasil, tem versos como este, do soneto "Incensos": Que elevam-se aos espaços, ondulantes; ou ainda este, de "Lubricidade": Que dá-te medo e dá-te pesadelos.
Por sua vez, a síncope, presente em todos os nossos românticos, seja expressa, como em Gonçalves Dias, em "Tabira" (Raso outeiro ali perto se of'rece), seja não expressa, como em Álvares de Azevedo, em "O Conde Lopo" (O perfume das trovas vertiginava), não foi usada somente pelos românticos. Embora condenada pelos tratadistas do Parnasianismo, vamos encontrá-la em Raimundo Correia (Ora, túrgido, a c'roa vitoriosa) e Alberto de Oliveira, que usou também outros tipos de metaplasmo.
Mas voltemos aos Broquéis, e transcrevamos este verso de "Satã": Vai c'roado de pâmpanos venustos. Aí está a síncope, no maior de nossos simbolistas.
Quanto à vogal de apoio, a que aludimos, e que aparece com tanta insistência na poesia de Lívio Barreto, figurou tantas vezes em versos de Gonçalves Dias que Manuel Bandeira chegou a afirmar: "o brasileiro de fala mole se está traindo a cada passo no suarabácti", pois o poeta maranhense escreveu de modo que se pronunciasse, "brasileirissimamente", como ainda observa Bandeira, subimarinha ("Os Suspiros"), obijeto ("Solidão"), crípita ("A Morte é Vária"), iguinóbil ("I-Juca-Pirama"), etc.
De Fagundes Varela muitos exemplos poderíamos citar; baste-nos, porém, este, de "Eu Amo a Noite"; As águas torvas de ignotos rios. De Castro Alves, temos no citado poema "Horas de Saudade" este: Há ritmo e cadência no teu passo!
E justamente essa palavra ritmo, também com suarabácti (rí-ti-mo), é que vamos encontrar no soneto "Pomo do Mal", de um decadentista, Fontoura Xavier: Como um canto de morte ao ritmo dum sonho. Acrescente-se ainda que o simbolista Maranhão Sobrinho, que publicaria seu primeiro livro em 1908, escreveu este alexandrino no soneto "Interlunar": Tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio, em que temos de ler o-quis-si-gê-nio.
Assinale-se, de passagem, que os poetas modernos têm recorrido ao suarabácti, em poemas de metro regular; é que aspiram à brasilidade máxima, e nosso povo comumente apela para a vogal de apoio, ao pronunciar palavras como subimarino, abissoluto, peneu, adevogado, etc.
Não foram poucas as rimas toantes de que se valeu o poeta granjense ao longo de seu livro: paragens/margens, tempos/templos, leite/corpete, virgem/vertigem, etc. Nem será necessária a transcrição de versos assinados por Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Machado de Assis e outros para demonstrar que rimas desse tipo faziam parte do arsenal romântico, sendo mesmo indefectíveis os duetos virgem/vertigem e festa/orquestra.
É perfeitamente natural, portanto, que um jovem poeta, embora tentando a originalidade através de novas formas, ainda recebesse influência dos antigos mestres, o que aliás ocorreu com todos os escritores de sua época: Antônio Sales, em seu segundo livro, publicado no ano da morte de Lívio, usou, num poema de rimas consoantes, "Lendo Versos Escritos Outrora", a rima mármore/ árvore.
Os mais apegados aos cânones rígidos da versificação parnasiana devem ter estranhado que Lívio Barreto usasse rimas como vácuos/fracos, lousas/rosas, suspirava/cara ou de singular com plural, como religiosamente/plangentes, embora lhes agradassem as rimas compostas como pântanos/canta-nos, tão do agrado de Emílio de Meneses...
Com relação às primeiras, além de Lívio ser um tanto rebelde às regras dos tratados (como seu companheiro Lopes Filho), podemos lembrar que um poeta da estatura de Luís Delfino se deu o luxo de rimar celeuma/emblema, Danaide/divindade, auréola/pérola, etc., tudo isso em Algas e Musgos, o mais parnasiano de seus livros.
Com respeito às segundas, há precedentes ilustres, pois o Poeta máximo de nossa língua escrevera:

No seu regaço os cantos que banhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baixos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado...

De Castro Alves é famosa a estrofe final de "O Navio Negreiro", onde esmaga e plaga vão rimar
com vagas.
Diversas vezes escreveu Lívio Barreto fráguas (fornalha ou, em sentido figurado, amarguras), quando deveria ter escrito fraga (rochedo, escolho), como neste passo:

Também, mergulhador, desci ousado,
Rasgando as ondas, contornando as fráguas
Da vida, mar indômito, assanhado,
Com o peito cheio de canções e mágoas.

Errou o Poeta, seduzido pela rima. Ocorre, entretanto que, como ele, figuras de prestígio nacional fizeram o mesmo. Olavo Bilac, em "O Caçador de Esmeraldas", depois de falar nas águas das lagoas, referiu-se aos rios, que iam, "em quedas e bramidos", mordendo os alcantis, roncando pelas fráguas. O mesmo fizeram Alberto de Oliveira ("A Torrente"), Francisca Júlia ("A Um Poeta"), Fontoura Xavier ("Um Prólogo"), e vários, vários outros.
São horas de advertir que, atrás de todo esse arrazoado, não nos move, de maneira alguma, a intenção de pretender provar que o poeta cearense era perfeito, e que todas as suas irregularidades formais foram absolutamente conscientes. Lívio Barreto morreu muito jovem para que se diga que sua obra estava já cristalizada em sua feição definitiva. Já lhe notamos certa falta de unidade no livro. Apenas queremos deixar claro que a grande maioria de suas excentricidades artesanais se encontra, embora menos ostensivamente, em grandes vultos de nossa literatura poética. Por outro lado, não se deve esquecer que o Simbolismo rompeu com uma série de imposições da versificação castilhiana, e o poeta cearense, bem antes de Emiliano Perneta, já desarticulava o ritmo de seus versos penumbristas. O que parece fora de dúvida é que o Simbolismo de Lívio Barreto não foi bebido em Cruz e Sousa, como o de muitos epígonos, mas em versos dalém-mar; dir-se-ia que mesmo sem o famoso grupo da Folha Popular, do Rio de Janeiro, ele seria simbolista, e por isso disse Mário Linhares que "ele teve a intuição do Simbolismo, antes mesmo de conhecer coisa alguma dessa escola". Após lembrar que a característica essencial dos decadentistas é a obscuridade, afirma ainda o poeta e ensaísta que "os versos de Lívio Barreto não chegaram, pois, a sofrer influência da escola de que foi Cruz e Sousa o nosso gonfaloneiro glorioso". Não chegou a receber influência da escola brasileira, esclareçamos para evitar quaisquer dúvidas, mas impregnou-se da roxa melancolia de Anto. Em suas Cartas Literárias relembrando os tempos da "Padaria", Adolfo Caminha escreveu: "O único volume do Só, que aparecera misteriosamente na Província, andava de mão em mão, era lido e relido, e entrava-nos pela alma como um jorro de luz setentrional, como uma onda quente de vida nova. O Só era a nossa bíblia, o nosso encanto, o nosso livro amado." Artur Teófilo conta, no artigo em que traça o perfil biográfico do Poeta, que recebera de Lívio, após uma noite em que os dois estiveram relendo o livro de Antônio Nobre, um soneto de concepção estranha – segundo diz –, parecidíssimo com os do poeta português, tal era sua capacidade de assimilação. Poemas assim, porém, ele os fazia por brincadeira, visto não querer escravizar-se a nenhum modelo. Realmente, uma coisa é imitar e outra, bem diversa, receber influência, coisa de que nem os mais velhos se livram muitas vezes.
Pelo menos quanto à versificação Lívio Barreto parece haver seguido bem de perto, em algumas irregularidades, o grande simbolista luso. Na 2ª estrofe de "Ao Canto do Lume", do Só, datado de 1891, temos, além da musicalidade do trímetro, de que tiraria notável efeito o poeta cearense, em "Os Cravos Brancos", o suarabácti no 2º verso (Josephe) e ainda o hiato no verso 3º (na/áurea):

Faz tanto frio. (Só de a ver, me gela, a cama...)
Que frio! Olá, Joseph! Deita mais carvão!
E quando todo se extinguir na áurea chama,
Eu deitarei (para que serve? já não ama)
Às cinzas brancas, o meu pobre coração!

Liberato Nogueira, em artigo publicado em 1909, afirmava: "Se por vezes [Lívio] chegava ao delírio num áspero movimento de tresloucado, outras dedilha monodias ao sabor das trovas singelas. Ressaltam pelos seus descuidos alguns defeitos de metrificação, irregularidade da cesura e deslocação do hemistíquio." É que Liberato Nogueira estava apegado às regras do tratado de Castilho, seguido por Bilac e Guimarães Passos, e desconhecia talvez que Antônio Nobre, cujo livro surgiu em 1892, trazia inúmeros versos irregularíssimos, trímetros e alexandrinos sem cesura. Nele certamente encontrou justificativa o jovem cearense, para tornar-se um dos precursores da. desarticulação rítmica no Brasil. Sim, porque as irregularidades métricas existentes em vários de seus versos, como nos de "Os Cravos Brancos", por exemplo, não são, de maneira alguma, fruto do desconhecimento das técnicas versificatórias; como dissemos, talvez ele se libertasse mais tarde de alguns tiques românticos, mas essa variação de ritmos o acompanharia certamente, pois a elas o autorizavam as excentricidades do livro amado dos padeiros", e com elas sintonizava perfeitamente a sua vocação de rebelado. Se assim não fosse, teria o Poeta modificado os versos do citado poema, composto em 1893. Desse mesmo ano é por sinal o soneto "Lágrimas" e quem poderá dizer que o autor de tão bela produção desconhecia as leis do verso?
Como em Antônio Nobre, a Lua exercia extraordinário fascínio sobre Lívio Barreto e assim é que a "monja da noite" aparece, ungida dum halo místico, em vários de seus poemas, como "Dolentes", "Sombra e Luar", "Pelo País do Sonho", "Lágrimas", "Poemas Noturnos", "Ao Luar" e outros mais, inclusive "O Sono do Coração", que inexplicàvelmente não foi incluído no seu livro, mas que fomos encontrar em O Pão nº 30, de 15-12-1895. É datado de 1893, sendo de junho ou julho, uma vez que no jornal está grafado Juho, faltando exatamente a letra que distingue a grafia entre os dois meses. Ei-lo:

Silêncio na rua. Que longa tristeza
       Paira no ar frio e pesado:
Oh, lua de Junho, que incutes tristeza
       Como um castelo abandonado;
       Como a visão de um mau passado,
       Como uma vela ao dia acesa!

Nas telhas das casas distantes, cintilas
       Pólen de prata do infinito!
Oh, lua de Junho, das tuas pupilas,
       Silenciosa, sem um grito
       Deixas rolar o pranto aflito
       Em ondas claras e tranqüilas.

O vento tardio da noite murmura
       No campanário abandonado.
Oh, lua de Junho, tão triste, tão pura
       No teu roupão aurilavrado,
       És como um cravo desbrochado
       No azul monótono da altura.

As aves noturnas, piando, na Igreja
       Oh, lua de Junho, no alto sobeja
A luz que deixas, pelos ares,
       Em flocos, ir cair nos mares
       Onde as espumas têm inveja.

Naquela janela sonhando ao relento
       Deixei ficar meu coração,
Oh, lua de Junho, zombando do vento
       Cantando a mística canção
       Do seu amor, cheia de unção
       E de pesar, como um lamento!

De tarde, que ainda não era o sol posto,
       O fui deixar n'essa janela;
Oh, lua de junho, vieste, e no posto
       Como uma boa sentinela
       Achaste-o ainda, que hora aquela!
       Inda a velar ao frio exposto.



Faz frio. Que importa que gele a neblina
      Quando se dorme e sonha e esquece?
Oh, lua de Junho, se a morte fulmina,
       O sono as dores adormece!
       Oh, coração, dorme...
............................................           Parece
       Que uma mulher o afaga e nina!


Este poema desconhecido, com sua atmosfera mística, sua impressionante musicalidade, em que se associam versos hendecassílabos iâmbico-anapésticos e octossílabos, poderia figurar em qualquer antologia do Simbolismo brasileiro; e não só de seu ritmo, como também da repetição do início do 3º verso, em que surge o fascínio da Lua, provém grande parte de sua magia encantatória.
Lívio Barreto nasceu na fazenda dos Angicos, distrito de Iboaçu, comarca de Granja, no dia 18 de fevereiro de 1870, há cem anos, portanto, e faleceu, vítima de congestão cerebral, em Camucim, no dia 29 de setembro de 1895, não com 24 anos de idade, como registram Waldemiro Cavalcânti, no prefácio do livro póstumo, Antônio Sales, na "História da Literatura Cearense", Mário Linhares, em Poetas Esquecidos e na História Literária do Ceará e Dolor Barreira, na História da Literatura Cearense, nem ainda, com 26, como escreveu Rodrigues de Carvalho, em conhecido trabalho sobre as letras do Ceará, mas com 25 anos, 7 meses e 11 dias.
Editando-lhe piedosamente o livro de poemas, a Padaria Espiritual fez justiça à memória do notável e desventurado Poeta, e salvou do esquecimento o mais robusto e genuíno fruto do Simbolismo em nosso Estado.
E de tal modo avultou, no cenário de sua época, a poesia dos Dolentes, que Rodrigues de Carvalho, pertencente ao Centro Literário, rival da Padaria Espiritual (e que por isso não via com bons olhos os rapazes do "forno"), não conteve esta expressão magnificante, ao falar de Lívio Barreto, quatro anos depois de sua morte: "Foi um gênio como poeta!"

SÂNZIO DE AZEVEDO

Poemas com a letra A





          A GARÇA

Garça triste, garça branca,
Solitária e desolada
Sobre a praia, olha a nortada
Que as tuas penas arranca!

Ao longe, no cocuruto
Do morro, a neblina cai,
Depois sobe e no ar se esvai
Como o fumo de um charuto.

Ao vento que ondeia os juncos,
Vens de remotas paragens,
Garça, e com os dedos aduncos
Bordas a lama das margens.

Garça triste, garça errante
Vagando à beira dos pântanos,
Dize tua história – viajante,
As tuas saudades conta-nos.

Em bandos tuas irmãs
Buscam à tarde o poente,
E tu, solitariamente
Sob o frio das manhãs,

Pelas noites de invernia
Quando os céus despejam água,
Passas calada e sombria
No côncavo de uma frágua.

Garça triste, garça branca,
Solitária e desolada!
Garça triste, olha a nortada
Que as tuas penas arranca...

                    * * *


            A GAZELA

Retine o sol nas árvores, dardeja
Na esbraseada areia das estradas;
Vão dos búfalos negros as manadas
Beber a água que, trépida, roreja.

Entre os juncais das margens, inquieta
A onça espreita; os pardos elefantes
Pacientes, vão das árvores distantes
Buscar a sombra protetora e quieta.

Chega a gazela tímida e ligeira,
E as delicadas patas estendendo,
De um salto chega à borda e vai bebendo,
Pendido o corpo sobre a ribanceira.

Passa, curvando os trêmulos juncais
Do vento a rija e cálida bafagem...
Como o estridor de lúgubre voragem
Ressoa um urro pelos matagais.

E no cristal do ambiente um corpo rola,
Fulvo, aos raios do sol se precipita,
E numa sede oceânica e maldita
A tragédia do sangue desenrola.

Tomba a gazela tendo o peito aberto
Por duas largas e mortais facadas!
–Do sangue o rio bebe-lhe às golfadas,
O sequioso vampiro do deserto!

E ela morrendo, em queixas flebilíssimas,
Dos grandes olhos moribundos, vagos,
Deixa cair as pérolas puríssimas
Que o martírio arrancou desses dois lagos.

Como a gazela, foi meu coração
Sob o azul virginal da adolescência,
Como uma ave em procura da amplidão
Cheia de sol, de luz, de transparência,

Em teus olhos, dois sóis sobre dois lagos,
Cheios de languidez e de fulgor,
Beber a explicação dos sonhos vagos
–Pombas que chegam quando chega o amor!

Bebendo-te esse olhar onde boiava
Toda a tua alma virginal e mansa,
Minh'alma à luz do amor se despertava
Sobre o leito risonho da esperança.

Dobra-se a folha ao livro que nos fala
Da longínqua saudade do passado,
E abrimos d'alma o escrínio alvo e sagrado
Para melhor sentirmo-la e sonhá-la!

Não te recordo mais; somente aquela
Lágrima triste que te vi chorar
Destes versos no fim fez-me lembrar
Os dolorosos prantos da gazela!...

                     * * *


               A UMA NOIVA

Magoada flor que vais ao ergástulo frio
De um leito sem amor o coração levar!
– Folha, quem te atirou à corrente do rio?
– Concha, quem te prendeu ao rochedo do mar?

Tua grinalda tem laivos de pranto ardente,
Na gaze de teu véu ondula a ânsia queixosa,
E tu vais para o altar desesperadamente
– Fantasma de mulher, pálida, silenciosa!

Atraiçoas o amor – lírio magoado e débil –
E a harpa eólia do peito as cordas arrancando,
Quem lhe ouvirá, morrendo, o angil murmúrio flébil,
Que de alma em alma vai como um sino dobrando?

Em teu olhar pervaga a sombra do Passado,
E o teu lábio sorri triste, saudosamente!
Diamante sem fulgor! Bogari desfolhado!
Nuvem que se inflamou ao roçar no poente!

Olha em redor de ti, perscruta, inquire, chama
O sonho que nimbou tua fronte de criança;
Essa ilusão azul, essa doirada trama
Onde dentro vogava o batel da Esperança!

Não mais! poreje embora a tua azul pupila
O pranto – a diluição de teu martírio atroz –
Tira o teu coração do sepulcro que o asila
Que ele só te ouvirá a endolorida voz!

Converteste o rosal de tua mocidade
Num campo-santo aonde, ansiosa e dolente,
Na árvore tranqüila e mesta da saudade
Pia a estrige da Dor, triste, agoirentamente!

Dos teus anos a flor mudas em goivo amargo,
Num adeus sepulcral foges da Primavera;
Nem um sonho a enfeitar o paul do letargo!
– Deserto sem a sombra amiga da Quimera!

Por que deixaste assim acorrentado e exangue
Teu coração subir à forca do Egoísmo?
Que é de tua vontade? O que fizeste ao sangue
E às tuas asas d'anjo em frente deste abismo?

Olha, apesar do gelo amargo da Descrença
Meu coração é bom e compassivo quando
Vejo a noite da Dor tragando a alva da Crença
E o golfão da Desgraça um coração tragando!

Ó moribunda flor! martirizado lírio
Que a tristeza fatal funebremente engoiva,
A flor da laranjeira é o teu maior martírio
E a Lágrima há de ser o teu sendal de noiva!

                         * * *


           A UMAS MÃOS

Mãos de crianças, mãos pequenas,
Mãos que, ao pousar no teclado,
Lembram um par d'asas nevado,
Mais leve que as próprias penas.

Nasce o ritmo, a harmonia
Golfa maviosa e dolente,
Como um chorar de anjo doente
Aos pés da Virgem Maria.

Se as tuas mãos de alabastro,
De arminho de neve, pousas
No teclado, choram astros
No céu, animam-se as cousas.

Corre um frêmito nas rosas,
Acende-se o céu; soluçam
As virações; e, curiosas,
As estrelas se debruçam.

Há murmurios, dolências
Tênues suaves devaneios;
Brancas, doces inocências,
Fluidos, aromas de seios.

Como silfos, passa no ar
O bando das ilusões;
E andam anjos a afinar
As harpas dos corações.

Mãos divinais que a miragem
Dais-nos da luz dos caminhos:
Rugitando com a folhagem
E pipilando com os ninhos.

Ó dedos de arminho, quando
Correr no teclado vejo-os,
Que sede de ir-lhes sustando
Os movimentos aos beijos!

                    * * *


                    A VOLTA

Voltaste! Olha-me terna e longamente!...
Da derradeira lágrima chorada
Em minha face pálida e sulcada
Inda o sinal verás fundo e eloqüente.

À mágoa entregue de te ter ausente,
Minh’alma, há tanto tempo separada
Da tua, foi-se enferma e contristada
Se contraindo dolorosamente.

Mas, tu voltaste, ó pálida senhora,
E eu vi, levada na asa da alegria,
Minha tristeza funda e aterradora.

Não há dia que valha-me este dia,
Todo cheio das pompas e da aurora
Que o teu olhar angélico irradia.

                     * * *


                            A***

                        I
Não te apavores tu, não te atormentes,
Ó minha doce e virginal senhora,
Às rajadas coléricas, frementes,
Que me envolvem de dia e de hora em hora.

Como o mergulhador que sobe à tona
Sacudindo a ensopada cabeleira
E as vagas corta procurando a beira,
E calmo, sobre as águas se abandona:

Eu vou sereno contemplando o vulto
De um ideal que me sorri na mente...
Ódios? Não vejo, e rio-me do insulto,
Rio de todos, e amo a ti somente.

Sei que separa o vírus da calunia
Muitas almas e muitos corações,
Mas a inveja banal desses vilões
O meu desprezo simplesmente pune-a.


                          II
Longe, no vasto mar, ermo, infinito,
A vela rasga-se ao bater do vento,
E o marinheiro audaz não solta um grito
Sobre as ondas do líquido elemento.

Pois se o navio vaga e não deriva
Do rumo, e aproa aonde há de chegar
Não teme o mar, e aos ventos não se esquiva:
Que importa os ventos e que importa o mar?


Bem como o marinheiro, eu não descoro
Ao rugir da calúnia, bronco e fundo:
Que me importa esta gente, se eu te adoro?
Se tu me amas, que me importa o mundo?

                         * * *


      ALFREDO PEIXOTO

Pela escada de sonhos da Poesia
Tu te elevaste ao paraíso da Arte;
E a asa serena e branca da alegria
Suavizou-te a dor por toda a parte.

Águia do verso! pelo espaço afora
Ias, serena e boa e gloriosa,
E a alma de Poeta cândida e sonora
Diluías na Rima vitoriosa.

Foste ao seio profundo do oceano
Coroar-te de algas, de corais,
Não sucumbiste, artista soberano,
Não morreste, descansas, nada mais.

Mas teu descanso, que é o descanso eterno,
Causa-nos mágoa e causa-nos pesar,
Pois nunca mais na lira há de vibrar
Teu coração melodioso e terno...

E os que te vêem a lira emudecida,
Os que sabem sentir como sentiste,
Para os quais tua súbita partida
Foi um adeus imensamente triste,

Vão a chorar em bando e em romaria
Pela triste Avenida da Saudade,
De tua mente o lírio da Poesia
E de tua alma a rosa da Bondade!

                        * * *


AMOR! AMOR!


Lá vem o dia
Abrindo os olhos;
Olha e só vê flores aos molhos
       E alegria! 

Canções maviosas
Em cada galho,
Pérolas as per'las do orvalho,
       Tremem nas rosas. 

Ressoa um canto;
Ressoam trinos:
São as aves: estão como meninos
       Em dia santo. 

O campo inteiro,
A relva toda;
Até o vento anda de roda,
       Que brejeiro!  

O riacho, o rio,
O próprio mar
Se aqui estivesse ia cantar
       Como um vadio, 

E agora nós;
Olha este céu:
Azul como um olhar: é o teu
       Se ele tem voz!... 

Sim, o céu fala
       Com a voz de Deus...
Que cheiro é este que se exala
       Dos seios teus? 

Alguma flor?
Vê bem, procura...
Não, é tua alma que murmura.
       Amor! Amor!

            *  *  *


ATRAVÉS DO SONHO 

Cerro os olhos de noite, enquanto o sono
Não chega, e deixo-me ficar sonhando
Neste abstrato e lânguido abandono
De quem com o coração vai conversando. 

E como um triste e luminoso bando
De garças, sob o azul de um céu de outono,
Vão minhas utopias emigrando
Do altar aonde o teu amor entrono. 

Trono de flores que a ilusão colora
Minuto por minuto, enquanto chora
O Coração no íntimo, sentido, 

Aonde o teu amor mal pousa e aonde
Minha esperança última se esconde
Como um pássaro triste e malferido.

                  *  *  *




Poemas com a letra B




                     BELA

Alta, franzina, erecta, o porte nobre e fino
De uma graça ideal e planta delicada...
Através do esplendor da renda perfumada
Emerge o seio firme, estonteador, divino.

De uma graça felina e de risadas francas,
Ao olhar-nos o fulgor de seus olhos serenos
Faz lembrar em jardins de seiva e viço plenos
Dois miosótis azuis entre açucenas brancas!

                      * * *



BOA VIAGEM


A Eduardo Sabóia


Alonga a tua vista, olha, perscruta
A aquosa solidão que se distende,
Sagrada, misteriosa, álgida e bruta,
E, pensativo, atende.
Afla ao vento marinho a vela túmida,
Sobre o dorso da vaga o barco voa,
Sacode o oceano a cabeleira úmida
Sob a cortante proa.


Das desoladas, pensativas plagas
Do ar se eleva um coro d'ais, errante!
É a dolorosa súplica das vagas
À luz agonizante.
Morre na umbela extrema do Ocidente
O sol – rosa de fogo em campo raso –
Vaga a saudade no ar fluidicamente...
É o ocaso! o ocaso!


E o barco foge e a noite se aproxima,
Sinistra o envolve, ó noite atra dos mares!
Como que se une o pesar de cima
Com os nossos pesares.
E quem te embalará, viajante pálido,
O sonho tardo que a saudade instila,
Quando o sono fechar-te ao sopro cálido
A lânguida pupila?


E quando o luar na espuma lactescente
Seus reflexos lançar, trêmulos, baços,
E a tua alma chorar, quem, docemente,
Há de estender-te os braços?
Ninguém! Família, amor deixaste e vais,
O rosário desfiando das saudades,
Em busca de remotos ideais,
Longínquas claridades.


Que de teu lar a imagem te proteja,
Cantando o poema das recordações,
Nessa cruenta, intérmina peleja
Das nobres ambições;
Que te perfume a adolescência forte
A saudade santíssima dos teus:
No frio sul lembra o calor do Norte...
Boa viagem, meu amigo, adeus!




 


Poemas com a letra C



    CANÇÕES DE MAIO


Brandos eflúvios suaves
Trouxe Maio, ó meus amores!
São rosas, dizem as aves;
Esses aromas suaves...
São anjos, dizem as flores.


São anjos no céu decerto,
Que espalham tamanha luz!
Disse-me um lírio entreaberto;
São anjos no céu, decerto...
Nossa Senhora ou Jesus.


O SOL


Tesoiros em cada raio
De rubis e diamantes
Trouxe pra dá-los a Maio;
Tesoiros em cada raio
Pra Maio dar aos amantes.


AS FLORES


Trouxe-nos novos aromas
Pela manhã a alvorada;
Perfumes puros de pomas,
Desconhecidos aromas
De uma urna ignorada.


O LAGO


Ontem à noite o luar
Era uma rosa no céu:
Era uma hóstia no altar;
Ontem à noite o luar
Era uma noiva de véu!


UMA ROLA


Meu ninho fi-l o das penas
Do meu colo; é tão macio...
Tem o frouxel de açucenas,
Meu ninho que eu fiz de penas
E de carinhos teci-o.
Sob uma moita de rosas

              *  *  *

            CANTARES

                   I
Foi Deus quem o azul manchando
De lágrimas d'oiro fez
O pranto que deslizando
Lava e entristece-te a tez.

                 II
Pois se o céu chora, tu choras
Filha amorosa e sensível...
Estrela! à luz das auroras
És um soluço inaudível.

                III
Hão de passar muitas eras
Antes que tu, mocidade,
O vago dessas quimeras
Vejas tornar-se em verdade.

                 IV
Do colar de oiro dos sonhos
Tombam os risos e as pérolas,
Nos sorvedoiros risonhos,
No abismo das canções quérulas.

                 V
A noite dessa incerteza
Deploras amargamente;
Só, no entretanto, a tristeza
Sustenta tua alma doente.

                VI
Tu no outro tempo vivias
Alegremente a cantar:
É que amar tu não sabias...
Hoje é que sabes amar.

              VII
Deixa investigarem sábios
A causa, o mal que te aflige,
Tranca o segredo nos lábios,
Ó pomba, e foge da estrige.

              VIII
Que importa, aos doutores, males
Que eles não podem curar?
Querem fazer que tu fales...
Cuidado! não vás falar!

               IX
Virações das tardes mestas,
Vagos suspiros de aragens,
Coração, que é de tuas festas?
Desertos, que é das miragens?

               X
Já lá passaram os tempos!
Hoje somente desejas
A paz austera dos templos
Onde esquecido tu sejas.
             *   *  *


CARTA

(Ao amigo José Raulino)
I
Não digas que eu faço versos,
Pois não são versos que eu faço;
A Poesia é que eu desfaço
Em mil bocados diversos.

Fazer versos! Pra fazê-los
É necessário ao artista
Ter o sonho de conquista
No sono dos pesadelos.

Ter por entre as urzes mestas,
Da vida ao brutal atrito,
A alma a olhar o infinito
E o coração sempre em festas.

Ter a sangüínea alegria
Bebida no leite quente
Que esguicha continuamente
Das pomas da Fantasia.

Ter, para prender a rima,
Loira fagulha travessa,
Que endoida, a passar por cima,
A mais tranqüila cabeça,

O riso franco e heróico
Que põe no lábio a esperança,
O riso guerreiro, estóico,
Ingênuo de uma criança.

Ter n'alma o perfume grato,
Religioso da crença,
Molhado como um regato
A dúvida – seara imensa.

Ter, pelas noites formosas,
Grandes urnas de esplendor,
No peito abertas as rosas
Lacrimejantes do amor.

Ter aspirações, delírios,
Frêmitos de águas possantes,
E o casto sono dos lírios,
E a rigidez dos diamantes.
Quem não tem, porém, como eu,
Para tecer coisas belas
Nem o filó das estrelas
Nem a luz e o oiro do céu;

Quem nem o cofre que encerra
Recordações do Passado
– Longínquo sonho esfumado
Sonhado por sobre a terra –

Pode abrir, sem que nos ares
Se empalhem como visões
O fumo das ilusões
E o veneno dos pesares:

Como há de enfeitar a frase
E o verso bordar de luz
Cobrindo-o com a fina gaze
Dos doces sonhos azuis?

Como há de tecer, amigo,
Coisas sutis, transparentes,
Quem traz os olhos doentes
De tanto chorar consigo?

Como há de escrever, como há de
Quem passa as noites sombrias
No horto das agonias
Sob o luar da saudade?

Por isso a musa dorida,
Cheia de tédio e cansaço,
Caiu como a águia ferida
Revoluteando no espaço.

E sinto, mau lutador!
Que meu ser, triste, se abisma
Rolando de dor em dor
No pego amargo da cisma.

II
Meu coração, que loucura!
Que incompreensível mistério!
Tem mudez de cemitério
E frio de sepultura.

Tudo me sai ante os olhos
Roxo da cor do martírio!
Ando a passear em delírio
Por sobre cardos e abrolhos.

A luz que em ondas espalha
A lua – Oceano de luz –
É grave como uma cruz,
Branca como uma mortalha.

As sombras, se a noite cai,
São mais longas e sombrias
Que os salmos das agonias
Ou o som pungente de um ai!

Vendo os flocos opalinos
Do luar, pela amplidão,
Julgo ouvir minh'alma em hinos
E em gritos meu coração.

O próprio sol que enaltece
A fronte azul do infinito
Semelha um olho, parece
Porém um olho esquisito.

Um olho que em si resume
Um brilho tão coruscante
Como o cáustico do ciúme
No coração de um amante.

Auras, aromas amenos,
Que vêm dos campos sem fim,
São outros tantos venenos
Pra me envenenar a mim.

As flores brancas e puras
Do campo, humildes e belas,
Eu comparo-as com donzelas
Porém... donzelas perjuras:

Ai, quanta ave sequiosa,
Em sequioso desvario,
Procura o cálix da rosa
Para encontrá-lo vazio!

Com que sereno vigor
As pombas tecem os ninhos,
Doces alcovas do amor
Saturadas de carinhos.

Bom! podeis viver e amar
Ó pombas arrulhadoras,
Pois não sabeis odiar,
Nem sabeis ser traidoras.

Vamos, inverno, despeja
A cornucópia do frio,
Ruge, blasfema, pragueja
Trôpego velho sombrio.

Molha, molha, não descansa
Pra ver se quando te fores
Vêm para os campos as flores
E para mim a esperança.

....................................................

Bom amigo, edifiquemos
Castelos de oiro e de luz.
Mas, para vê-los, voemos
Para os espaços azuis.

Para só de longe vê-los,
Longe, onde não chegue a voz...
Para evitar que os castelos
Desabem por sobre nós...
              *  *  *


COM AS ANDORINHAS
I
Adeus! dizem-te adeus minha tristeza
E a minha mágoa, o meu isolamento;
Porém minh'alma não; meu pensamento
Não e não! minha cândida princesa.

Do mundo cruzo a túrbida devesa
Cheia de cardos, cheia de tormento,
Resignado? Eu sei? no esquecimento
Talvez, talvez lutando na incerteza.

Vão-se no outono as andorinhas pretas,
Canta a saudade mística dos Poetas
Eternas loas, doloridos poemas.

Mas nestas notas a esperança ecoa...
Adeus? Pois bem: adeus! porém perdoa
Se eu te não choro as lágrimas extremas.

II
Hás de vir, hás de vir, bem sei que há de
Tua presença minha dor calmar;
E hás de minh'alma aflita ver flutuar
Por entre as sombras que a tua alma invade.

Asa ao meu verso dando a ansiedade,
E o amor a força indômita do mar,
Continuamente ela há de te encontrar
Sob a alameda umbrosa da saudade.

Velhos castelos ficam no abandono,
Como às rajadas ásperas do outono
Viúvo jardim de folhas amarelas.

Mas volta a primavera, a vida, o amor...
Voltam as andorinhas: vem com elas!
Mata a tua saudade e a minha dor!
               *  *  *


              CONDENADO

I
Sobre o estrado infamante o condenado...
Em volta o Povo, e a soldadesca em guarda
O cutelo a descer muito não tarda,
Não tarda muito o instante desejado.

Entanto o réu, ao murmurar ansiado
Da multidão, tirita e se acovarda
E à turva sombra misteriosa e parda
Da Morte se aproxima, desgraçado.

Mas, quem sabe? o perdão talvez, ainda
Chegue a tempo. Um instante mais!... infinda
Tortura! e chora, e reza e desespera!...

Assim meu coração por entre a bruma
Da Dúvida vê morrer um por uma
As ilusões e no entretanto espera!

II
Esperar! esperar! quando a alma chora
E sangra o coração que se enoitece,
E a esperança a tremer desaparece
E não mais volta quando volta a aurora!

O árabe a seguir deserto em fora
Vendo o simoun que aos poucos aparece
Já não pode esperar! reza uma prece
E cai sequioso à sede que o devora.

Ruge em meu peito o coração ferido,
Bate convulsa às grades da prisão
Como um leão em malhas envolvido.

Enquanto espectro da desilusão
Gargalha e ri, feroz como um bandido
Apunhalando em fúria um coração.
             *  *  *


              CONFIDÊNCIAS

Há na tua alma como na minh'alma
O fel perene da melancolia.
GUIMARÃES PASSOS

Lembras-te um dia quando eu te mostrava
Dessa mulher o pálido semblante
Que sobre o meu destino se elevava
Como o sol que se alteia no Levante?

Eu não te disse então que na corrente
Dessa beleza transcendente e calma
Eu tinha preso o coração fremente
E tinha presa a alma?

Que no coral daquele lábio puro,
Quando surgia a pérola do riso
Era como um clarão fendendo o escuro
E fulminando a gente de improviso?

Quanto te disse então dessa criança,
Dessa menina pálida e tranqüila,
Que me trouxera a rosa da esperança
Na lânguida pupila!

Não viste quando, trêmulo e contrito,
Eu te contava esse poema, irmão,
Não viste que era de minh'alma o grito,
E que era o grito de meu coração?
Que eu era a borboleta da crisálida
Desprendida, gazil, ingênua e louca
Sonhando o mel do amor na rósea boca
Daquela doce pálida?

Amigo! o inverno chega, a rosa tomba,
Tombam os ninhos, sentem frio as aves...
E na cerca pousada a triste pomba
Só tem arrulos trêmulos e graves.

Chegou-me o inverno a mim, lutuoso e frio,
E o coração tremendo se aconchega
Ao peito, como a hera que se apega
A um muro sombrio!...

Chegou-me o inverno da desilusão,
Foram-se os sonhos ao cair das flores...
Não mais o epitalâmio dos amores!
Anda nas trevas o meu coração!

Quando vai-se-nos o bando abençoado
Dos ideais que nós acalentamos,
O triste olhar volvemos ao passado
E choramos, choramos.
                    *  *  *



CONTRADIÇÃO

Nem vale a pena contar
O meu profundo penar!

Viver de ave que doideja
Presa dentro de uma igreja.

Pois imagina, senhora,
Que eu prefiro a noite à aurora?

Mais: – prefiro às noites belas
Com seu rosário de estrelas...

As longas noites trevosas,
Profundas, silenciosas...

E nem te cause piedade
A minha agreste verdade!

Pois se és tu minha alegria
E eu não te vejo de dia;

Se pelas noites de luar
Nunca te posso falar

Prefiro a treva sem fim
Pois tenho-te junto a mim.

E se mais cedo me deito
Mais te tenho junto ao peito,

Para isso basta-me então
Abrir o meu coração.

Pois se da desgraça o açoite
Leva a luz que me alumia,
Por ti, eu morro de dia
E ressuscito de noite.

          *  *  *


CREDENCIAL

Arte! suprema, incomparável Arte!
Tu, Cornélia, que os filhos avigoras
Pra desfraldar às noites e às auroras
Teu glorioso, harmônico estandarte;

Arte do Verso, prenhe de luares,
De sóis fecundos, de pujantes messes,
Amplo seio de prantos e de preces,
De amarguras, de risos, de pesares;

Arte do Verso, Arte das harmonias
Vibrantes, doudas cálidas, inquietas;
Elétrica centelha dos Poetas,
Que esfolhas rosas sobre as agonias;

Arte nevada de dolências meigas,
Pulcra santa de beijos dolorosos,
Que tens os seios de rosais cheirosos
E a virgindade de cheirosas veigas;

Arte, monja de idílica piedade,
Que tens, eterna, angélica visão,
No olhar o Angelus nobre do Perdão
E a paz augusta da maternidade;

Arte! ideal, oh sacrossanto viático!
Ó Arte – Mater de consolações!
Com os meus sonhos e amores e ilusões
Fiz-te um missal de Dor! – sou teu fanático!
 
                   *  *  *