LEDOS DIAS de descuidosa infância, passados à sombra de cajueiros floridos nas verdes quintas, à margem do Coreaú, em cujas águas atiravamo-nos afoutos; como desses saudosos tempos, vivas, guardo na imaginação as impressões!!
Éramos um forte grupo de meninos, formando uma família unida e disciplinada nos estudos e nos brinquedos, dela fazendo parte uma criança franzina, de olhos vivos, nervosa e contemplativa, revelando sempre aproveitamento nas aulas que acompanhava na Escola de nosso querido mestre Francisco Garcez e no Gabinete de Leitura Granjense, dirigido pelo ilustre Dr. Antônio Augusto de Vasconcelos.
De pouca duração, porém, foi essa convivência cheia de estímulos, de amor e de invejável fraternidade.
A luta pela vida determinara a dispersão desse formoso grupo que deu homens às letras, ao comércio, à burocracia e às indústrias.
Os que melhores recursos possuíam seguiram rumo das academias e muitos deles laurearam-se.
A criança franzina, cuja inteligência precoce, notada e admirada pelos seus condiscípulos, era filho de José Soares Barreto – um homem de honra e probidade imaculada, mas a quem infelizmente faltavam recursos para educar convenientemente os filhos, todos muito hábeis e esperançosos:
José Barreto, amigo que eu prezo como irmão, e que é hoje guarda-livros em Sobral, Ordônio Barreto, outro amigo precioso, guarda-livros em Granja, duas filhas e a criança que, apenas com o exame primário, tivera necessidade de abandonar os estudos e trocar os livros pelo metro, a escola pelo balcão.
Caixeiro de um seu tio negociante em Granja, Lívio Barreto não podia conter os ímpetos de sua alma em anseios de ideal superior e com José Barreto, Luís Felipe, Belfort e outros funda um jornal literário – O Iracema – onde apareceram seus primeiros versos, defeituosos ainda, mas já reveladores da inspiração e da originalidade de seu autor.
Pequeno e acanhado era o meio intelectual da terra e o poeta, cujos versos começavam a ser admirados e transcritos pela imprensa dos Estados, resolveu seguir para Belém do Pará, onde esperava encontrar colocação mais condigna a seus talentos.
Não lhe sorrira porém a fortuna na Amazônia e teve de regressar doente à terra de seu nascimento, trazendo a alma mordida pela serpente do ceticismo e o coração vazio de esperanças.
No regaço da família conseguiu restabelecer-se, volvendo então suas vistas para a Capital do Estado, a bela Fortaleza, onde ia surgir inteligente e sadia a plêiade de Padeiros tendo à frente a simpática figura do talentoso poeta Antônio Sales.
Em breve espaço aprestou bagagem e partiu, sendo bem acolhido e saudado como um talento promissor entre os novos que, como ele, ensaiavam vôos.
Mas, além disso, que aliás satisfazia muito a parte moral de seu ser, era preciso o pão da vida material sem o qual não há milagre de equilíbrio que faça sustentar no espaço um corpo vivo. Dificuldades surgiram e Lívio teve que voltar às pesadas labutações do comércio, com as quais o seu espírito delicado e sensível não se coadunava.
As letras o atraíam e fascinavam irresistivelmente, mas delas era impossível tirar os meios de subsistência, numa terra onde a burguesia olha com sarcasmo e desprezo os que têm por valimento a inteligência.
Ser poeta e ter amor às letras e, sobretudo, ter talento é grave delito que duras penas acarreta.
Lívio Barreto expiou amargamente o horroroso crime de perpetrar bonitos versos.
Altivo como os elevados granitos que põem sentinela à nossa cidade natal, o poeta preferia pendurar a lira nas jeremataias que enverdecem as margens do Coreaú a descantar submisso nas arcadas das habitações dos poderosos.
Por isso, quando a ascensão foi fácil aos medíocres, áspera e insuportável foi sua existência, tecida de decepções, tristezas e amargos dissabores.
Desiludido das carícias da fortuna, fora do lar, a ele regressa como o filho pródigo, acontecendo naufragar nos baixos da Periquara em viagem que fazia o vapor "Alcântara".
Aqui permita-nos Artur Teófilo a transcrição de seu formoso e completo artigo publicado no Pão de 15 de outubro de 1895.
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“Na liça de combate dos que, aqui no Ceará, moirejam na afanosa labuta do escrever, acaba de se abrir um claro de todo o ponto impreenchível com o falecimento do malogrado poeta do Dalentes, tão prematuramente roubado às Letras brasileiras e a nós, da Padaria Espiritual, de que era ele um justificado motivo de orgulho.
Lívio Barreto foi poeta por uma violenta impulsão do seu organismo, a que não pôde fugir nunca, mesmo quando o fel dos desalentos o punha temporariamente fora das lides da inteligência.
Ele foi, quanto a mim, nestes últimos anos, a mais completa envergadura de poeta que floresceu no Norte, pois ninguém como ele possuía essa delicada sensibilidade artística que o fazia versejar às soltas, descompassadamente, numa alucinação incoercível de vidente.
Aos que hão de vir, aos que fizerem no futuro a história literária da minha terra eu deixo a tarefa de, detalhadamente, estudarem a vibrante e original individualidade artística do infeliz amigo; a mim só me compete deixar aqui gravada a sinceridade da minha pena e a admiração incondicional e justa que consagrava menos ao artista que ao belo e rigidíssimo caráter do Livinho.
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Lívio Barreto nasceu na fazenda dos Angicos, distrito do Iboaçu, da comarca de Granja, neste Estado, a 18 de fevereiro de 1870.
Foram seus pais José Soares Barreto, já falecido, e da Mariana da Rocha Barreto.
Juntos vivemos,– o Livinho e eu,– na formosa aldeia que a nós ambos serviu de berço, e de onde saímos muito cedo, acompanhando a nossos pais, que lutas partidárias expatriaram então.
Lívio foi morar na cidade de Granja, onde chegou em 1878 e aí aprendeu com o professor Francisco Garcez dos Santos as primeira letras.
Exigências de fortuna obrigaram-no a ir, muito criança ainda e muito a contragosto seu, servir como caixeiro de um parente e, nesse ofício embrutecedor do mercantilismo aldeão, gastou ele a melhor parte de sua infância, incompreendido e anônimo.
Por esse tempo exercia um ofício na magistratura da terra o Dr. Antônio Augusto de Vasconcelos, que soube aproveitar as suas excelentes qualidades de educador, ensinando a um punhado de rapazes esperançosos de Granja ligeiros conhecimentos de português, geografia e francês.
O tempo que lhe sobrava da sua tarefa diária empregava o Lívio ouvindo as lições do desinteressado mestre, lições que, por serem acomodadas às regras do convencionalismo, pouco aproveitaram à sua audaciosa imaginação de poeta, que então já se revelava energicamente.
Desse grupo de rapazes, dos quais o mais novo era o Lívio, saiu a futura redação do Iracema, periódico literário redigido por Belfort Teixeira, Luis Felipe e José Barreto, e no qual revelou o Lívio a sua decidida vocação para as letras, publicando versos e escrevendo crônicas humorísticas.
Desaparecendo o Iracema e com ele aquele fugaz florescimento literário, foi-lhe pesando insistentemente o aborrecimento daquele atrasado meio de civilização, e ao seu espírito sonhador e idealista se apresentou, numa clarividência de contraste, um mundo outro, onde as suas grandes faculdades imaginativas pudessem, livres de peias, se desdobrar livremente.
Foi o Pará a terra escolhida e para onde seguiu ele a 10 de junho de 1888, empregando-se logo em seguida como caixeiro na loja Maripôsa.
Parece que o perseguia em toda parte o maldito balcão que odiava tanto e do qual tentava fugir esforçadamente, em convulsivos ímpetos de ave presa.
Foi ali, entretanto, que conseguiu conhecer a maior parte dos poetas portugueses e onde travou conhecimento com João de Deus do Rêgo, que muito contribuiu para a formação da sua orientação literária, nova, equilibrada e bem entendida.
À impiedade da nostalgia e às saudades que o torturavam não pôde resistir a triste e lacrimosa sentimentalidade do meu amigo, e a 7 de agosto de 1891, muito doente de beribéri, regressou ele à terra natal, com a bagagem de alguns livros, um poema inédito e um fígado irritado.
Foi então que muito intensamente avigorou-se-lhe na alma uma paixão antiga a que ele muita vezes tentou embalde fugir, e que o acompanhou, cada vez mais insistente, até à morte.
E, a propósito, é bom que eu, – seu amigo e confidente, – o afirme aqui:– toda a obra literária do Lívio Barreto não é mais que o diário escrito dessa infeliz paixão, que tão implacavelmente o torturou, impressionando-o muito, roubando-lhe a energia e desenhando-lhe sobre o rosto a nódoa de duas olheiras.
Por esse tempo, aparecia em Granja um outro jornal literário, – A Luz, dirigido por Antônio Raulino e ao qual veio de novo prestar Lívio Barreto a valia do seu concurso, publicando os "Versos a Estela", muitos sonetos e escrevendo ligeiras crônicas humorísticas.
Por pouco tempo se demorou ele em Granja, de onde saiu a 14 de fevereiro de 1892, para fugir à impetuosidade brutal da sua infeliz paixão que, dia a dia, mais se agravava, chegando à Fortaleza na noite de 16 de fevereiro, quando esta capital era um campo de batalha e as bombardas estoiravam incessantemente, vomitadas pelos Krupps da Escola Militar.
Ainda desta vez teve de se submeter à sua má estrela, indo servir como caixeiro do Sr, Adolfo Barroso.
E, como um protesto vivo contra a selvageria da sorte, começou a publicar no Libertador formosíssimos versos de uma suave melancolia, a que decerto não era estranha essa por quem, longe da pátria, ele ansiava ardentemente.
Por esta ocasião aqui se criava a Padaria Espiritual, de que foi Lívio Barreto um dos fundadores.
Desgostoso do ofício de caixeiro, resolveu voltar para Granja, tomando no dia 27 de junho de 1892 passagem no vapor "Alcântara", que nessa noite, desastradamente, naufragou na altura de Periquara.
Livio Barreto era um excelente nadador, e a esta vantagem, deve não ter morrido, com aquele mar furioso de Periquara, cheio de abrolhos e furiosamente irritado.
Na praia, nu, sem dinheiro, à brutalidade daquela desgraça, na desolação daquela catástrofe, o meu pobre amigo sentiu-se infeliz e nessa formosíssima poesia – "Náufrago", que ele escreveu deitado sobre a areia da praia, soube cristalizar todas as lágrimas, todas as amarguras daquela terrível noite.
Do naufrágio não pôde salvar nem um só livro, – sua única fortuna,– e lá no fundo do mar se ficou o original inédito do poema que ele havia escrito no Pará.
Em julho, de novo voltou à Granja, como guarda-livros da casa Beviláqua & Cia., onde esteve até 6 de fevereiro de 1893, quando mudou-se para Camocim, indo empregar-se na agência da Companhia Maranhense de Navegação a Vapor.
Foi de lá que ele, a instância do Dr. Waldemiro Cavalcânti, mandou para o prelo o seu livro – Dolentes – que um dia depois de sua morte foi entregue ao editor.
Do Camocim me escreveu ele a sua última carta, que recebi três dias depois de sua morte, e da qual transparecia a imensa desolação que: o acabrunhava, o tédio atroz que consumia a sua última energia.
* * *
No ar – dizia-me ele nessa carta, – passa uma tristeza mole de indolência. Dir-se-ia que as coisas bocejam. O teu amigo, entre tudo isto, parece uma indecisão.
* * *
Foi na sua banca de trabalho, pelas 3 horas da tarde do dia 29 de setembro, que caiu morto, fulminado por uma congestão cerebral, o meu querido e pobre amigo, esse excelente rapaz, que era não somente um poeta novo, original e um artista emérito do verso, mas também um dos maiores talentos que tenho conhecido.
* * *
O Lívio era magro, pequeno, altivamente petulante. Tinha o olhar penetrante, sem vacilações, a fronte alta e abaulada e uma palidez baça de hepático.
Ria pouco e só entre amigos deixava por vezes
transparecer a sua fina verve elegante, um bocado pessimista e epigramática.
Com o vulgo era sisudo, um tanto frio mesmo, com uns longes de bem entendido orgulho.
Usava caxemiras claras, chapéu de feltro alto, e fumava cachimbo, à noite, embalando-se rapidamente na rede, com um livro de versos nas mãos.
* * *
Eu não conheci ninguém que tivesse como Lívio, em tão elevado grau, o talento de assimilação e da Forma; uma noite estivemos lendo o Só do Antônio Nobre e no dia seguinte mandou-me ele um soneto, de uma concepção estranha e de uma forma torturada e vesga, moldado pelo escopro do decadismo e perfeitamente semelhante aos versos do poeta português. Essas produções, porém, ele não as considerava suas e rasgava-as.
Ele era, por índole, extremamente panteísta; falava do Sol de Setembro dos Cravos brancos, dos Cajueiros, da Canícula, do Amor; e a Dor, a Melancolia e o Tédio eram divindades vingadoras, contra as quais rugia sempre na impotência de não poder vencê-las.
Tinha pela sua velha mãe, pelas irmãs, o fetichismo idólatra de um crente e era amigo como bem poucos sabem sê-lo.”
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Depois da leitura do artigo de Artur Teófilo, apenas ligeiras considerações poderei acrescentar sobre o livro Dolentes, de que este prólogo é escuro peristilo.
São impressões pessoais de quem a imprensa diária, a advocacia e a política não roubaram de todo o amor pelas boas letras e que tem o culto da Arte, como uma Religião, exercido, embora, em oratório privado e em curtos lazeres.
Da geração cearense que procura dar impulso às letras com sadia e vigorosa orientação, Lívio destacou-se pela originalidade do talento, pela rara maneira de dizer e pela intuição elevada que possuía das cousas da Arte.
A sensibilidade artística de Lívio Barreto era como a da sensitiva selvagem, confrangia-se à menor vibração ou contacto.
No poeta, as decepções deixaram funda impressão, que deu a seus versos a feição dolente e nostálgica de um Ossian; ferindo aqui e acolá a corda simbólica, no desleixo nefelibata, mostra-se, ainda assim, superior aos que entre nós têm procurado acompanhar a nova tendência literária sem a compreenderem. E é por isso talvez que José Veríssimo diz que o novo simbolismo se não liga a causa alguma, sem ter por isso o mérito da originalidade, se a originalidade fosse possível – pois copia e imita desajeitadamente os franceses e portugueses.
O soneto "Torturado" é belo exemplo da facilidade de idealização artística, que José Veríssimo encontra nos versos de Verlaine:
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Se sorris eu recuo, se choras, me aproximo
E, como um rio, então, abro meu seio, o limo
Dorme quieto ao fundo: é o repouso da Dor!
Sufoca o teu querer; freme ao seio a paixão...
Não chega a saciar meu doido coração
A mágoa deste afeto, a angústia deste amor!
A poesia "Litanias" é outra prova da riqueza de idealização do meu jovem conterrâneo e amigo, cujo talento não chegou a lapidar-se na leitura dos mestres, mas deixou espólio suficiente para julgarmos do muito com que poderia enriquecer a nossa literatura, se a morte não o arrebata aos 24 anos de idade, quando procurava aprumar a sua educação literária dando a seus versos um cunho de ideal superior.
Insubordinado por temperamento, Lívio não sujeitaria jamais seu espírito a uma ordem de idéias que para manifestar-se tivesse de seguir processos quase mecânicos de uma escola consagrada.
Como artista não queria moldes: exercia em plena liberdade as funções criadoras de seu poderoso intelecto e, para notar, poucos possuirão o talento de assimilação como ele. Mas fugia sempre que era possível de copiar impressões alheias, e daí lhe advém essa originalidade que há de notar o leitor dos Dolentes.
E por isso mesmo na Biblioteca da Padaria Espiritual irá ter lugar especial o livro do desventurado confrade que procurou dar à sua obra toda sua alma, que transparece irrequieta, ansiosa, triste e torturada em quase todas as instâncias.
Para justificar a audácia do incompetente que fala, fazendo sombra à luz que do livro se espaneja, devo confessar ao público que não tomaria sobre mim o encargo de prefaciar este livro se não tivesse de obedecer à imposição da amizade.
Em carta de 2 de outubro de 1894 me dizia o autor:
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“O meu livro não tem prólogo e não tenho bem a quem me dirigir pedindo-o, senão a V., que pode com franqueza dizer o que ele vale; assim peço-lhe que continue a sua penitência apresentando esse pobre defeituoso à vida que o espera. A mim e a ele honrarão sobremaneira quaisquer palavras que haja de escrever em suas primeiras páginas. Creia que tenho andado bastante impressionado depois que V. tomou a peito a ímproba tarefa de fazer comparecer perante o tribunal do Público o pobre rimador granjense!
A minha ambição de autor satisfaz-se de antemão com qualquer juízo que lhe dispensem, mas a minha amizade ressente-se, meu caro doutor, de que o seu generoso intuito não seja coroado como V. em sua confiança o deseja.
Adeus. Abraça-o o
amigo e admirador
Lívio Barreto”
Foi cedendo a essa modesta solicitação de amizade fraternal, que me prendia a Lívio, que resolvi publicar o seu livro, precedendo-o das pálidas palavras que aí ficam sombreando a tela brilhante de seus versos inspirados, quase todos repassados da doce melancolia que o ceticismo, originado das decepções que se acumulam, instila na alma generosa dos artistas.
Em minhas palavras não divulgue a crítica outra cousa, além da sincera homenagem que anseio prestar à memória do desventurado conterrâneo que foi em vida a afirmação de uma possantíssima intelectualidade.
Fortaleza, julho - 1897.
W. Cavalcânti
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